Como as famílias podem apoiar a alfabetização?

Silvana Augusto* A entrada no […]

16 de fevereiro de 2019

Silvana Augusto*

A entrada no 1º ano marca uma passagem de vida muito importante para a criança, por isso é comemorada pela família e pelos amigos, que adoram dizer: “Nossa, como você está grande! Já vai para a escola! Agora é que eu quero ver, hem?!”. Entrar no 1º ano é como ganhar um passaporte para outro vagão da vida: a rotina vai mudar, assim como as tarefas e o tempo de brincar. Em nossa cultura, a escola está diretamente relacionada a essa transição que inaugura para a criança um novo ciclo de vida e um novo papel social. Na escola, a criança vira aluno e assume outro status, porque aprenderá coisas que só os iniciados nessa instituição aprendem. Haverá um tempo determinado para um dos mais valorizados ensinamentos da escola: ler e escrever.

Os pais, ansiosos por um resultado, se apressam a cobrar a escola. E não é para menos! Suas expectativas se justificam; afinal, ir para a escola significa assegurar um dos mais valiosos direitos de todo cidadão: expressar-se, ler, escrever e compreender o que é dito em sua própria língua. Mas, diante dos dados alarmantes de analfabetismo no Brasil, das tensões entre educadores sobre os melhores métodos de ensino, da publicidade de determinadas concepções de aprendizagem e da concorrência entre as escolas, é de se esperar que os pais fiquem preocupados: Será que meus filhos terão dificuldade em se alfabetizar? Será que aprenderão sem muito sofrimento, ultrapassarão os desafios dessa jornada e se tornarão bons alunos ou, infortunadamente, apenas aumentarão os índices de crianças que não se alfabetizam na idade certa?

Quando os pais cobram da escola e dos professores que se expliquem com relação às suas escolhas metodológicas e que sejam mais rigorosos, na verdade estão expressando o desejo de que tudo dê certo. Eles querem ter a certeza de que seus filhos terão sucesso no primeiro ano da escola, quando aprenderão a ler e a escrever. Não há nenhum problema nisso: os pais querem que seus filhos aprendam e a escola, a seu modo e do seu lugar, quer ensinar a todos.

Mas o que, afinal, envolve aprender a ler e a escrever? Como os pais podem ajudar a escola e os próprios filhos? O que eles precisam saber e assegurar para que as crianças tenham uma boa experiência nos primeiros anos que compreendem o ciclo de alfabetização?

A primeira coisa que é preciso reconhecer é que, apesar de todas as justificadas e legítimas expectativas, a criança que chega no 1º ano do Ensino Fundamental continua sendo criança. Ela continua querendo ser amada e protegida e precisa de muito apoio para vencer mais essa etapa de sua jornada na escola – uma jornada que está apenas no início.

É importante que a rotina em casa não sofra alterações radicais por causa da entrada da criança na escola. Ela precisa saber que não está perdendo nada; ao contrário, ganhará novas possibilidades. Será preciso ajudá-la a organizar os momentos de estudar, de ler e eventualmente fazer lições de casa, mas também será preciso assegurar o tempo de brincar. Brincar é uma das principais formas de elaboração do mundo, de compreensão dos papéis sociais, dos valores e das relações entre as pessoas. Brincando as crianças podem ter o tempo de que necessitam para elaborar seu crescimento, seu novo papel social e suas possíveis inseguranças. Nesse sentido é que dizemos que brincar é também coisa séria.

Nessa nova rotina no 1º ano, é muito bem-vindo um momento diário de exploração de livros, revistas e jornais (impressos e digitais) e leitura de diferentes histórias com as crianças.

A criança precisa compreender o valor e o significado que a escrita tem em seu entorno e na vida de sua família. Mais do que decodificar palavras, ser alfabetizado significa dominar diferentes usos e funções da leitura e da escrita em situações sociais variadas, com autonomia e criatividade para se expressar. Significa pertencer a uma cultura que tem seus modos próprios de reprodução, seus valores e comportamentos. A criança que se alfabetiza precisa participar dessa cultura. Se ela quase não observa ninguém lendo, se informando ou se divertindo com a leitura, por que haveria de querer aprender, por conta própria, a ler e a escrever? É muito difícil ter ideias ou interesse por um algo que está ausente.

É claro que isso também é papel da escola! A instituição escolar deve assegurar às crianças a presença de adultos leitores que se responsabilizam por colocar em uso, com as crianças, as práticas sociais de leitura e escrita: acompanhar o noticiário no jornal, ler histórias favoritas, aprender um jogo novo a partir das regras, tomar nota de informações obtidas em livros ou sites especializados nos assuntos que elas querem estudar, escrever dicas de leitura para os colegas que frequentam a biblioteca, entre tantas outras práticas.

E se os pais quiserem participar desse momento podem incluir as crianças nas atividades diárias sempre que a leitura estiver em jogo: tomar nota de algum recado, listar as compras do supermercado, anotar no calendário algum compromisso especial ou ajudar a ler a receita do bolo.

O ciclo de alfabetização não inaugura algo inédito para a criança. Crianças que vivem em sociedades letradas têm contato diário com práticas sociais que envolvem leitura e escrita, formulam muitas ideias e desenvolvem hipóteses próprias sobre como se lê e como se escreve. E essas ideias precisam ser acolhidas. Toda criança precisa ter a segurança de que não está partindo do zero, que não é alguém vazio e que seus conhecimentos e sua experiência de vida, anterior ao primeiro ano da escola, têm valor para os adultos que a cercam. Ela precisa sentir-se capaz e com boas ferramentas para aprender. Por isso a avaliação inicial que a escola faz é tão importante. E vocês, pais, não precisam se assustar com os resultados encontrados! Provavelmente vocês encontrarão registros semelhantes a este:

Nessa produção, Felipe, de 6 anos, escreveu tudo o que tem na festa de aniversário. Está lá: bolo, decoração, convite, cachorro-quente, bexiga, bala. Felipe já sabe muitas coisas! Mas, mesmo assim, muitos pais estranham quando encontram escritas semelhantes a essa e trazem à tona sua preocupação: “Mas ele vai escrever errado até quando? A professora deixa? E ela não faz nada? Na minha época a professora corrigia quando a gente errava.”.

Essa conversa é longa. Há maneiras diferentes de ensinar a ler e a escrever – e muitas vezes bem diferentes do modo como a maioria dos pais e avós foi alfabetizada, por meio de cartilhas. Muitos pais estranham quando as crianças não trazem para casa as lições baseadas nos treinos motores, nos exercícios com o alfabeto, na cópia das sílabas. Isso não é um problema. Não encontrar uma cartilha na mochila dos filhos não é necessariamente ruim nem denota um atraso da escola, ao contrário!

Muita coisa mudou desde que nós, adultos, formos alfabetizados. O próprio mundo mudou. Hoje é preciso saber ler e escrever em práticas sociais que não existiam para muitos pais e que provavelmente nem serão as mesmas quando essas crianças se tornarem adultas. Por esse motivo, é preciso pensar um processo de alfabetização que inclua a amplitude do letramento e que não se encerre na decifração de um código.

Pesquisas como a da psicóloga e pedagoga argentina Emília Ferreiro, discípula de Jean Piaget (representante da Psicologia da aprendizagem, da Psicologia cognitivista), revelam que o aprendizado da escrita pelas crianças se dá não por um processo passivo de assimilação de um código que elas precisam dominar. O que ocorre é bem mais complexo e envolve aspectos do desenvolvimento psicológico das crianças, de suas estruturas de pensamento.

Em sua pesquisa, Ferreiro notou que crianças de diferentes idades e contextos, ao escrever, têm ideias semelhantes ou cometem os mesmos “erros”. Todas essas regularidades levaram a pesquisadora a concluir que esses erros não são propriamente erros e sim passos sistemáticos na busca da compreensão das regras que organizam o sistema de escrita. Regras que, se dominadas, podem tornar a criança leitora autônoma, senhora de sua própria vontade e com capacidade de expressar o mundo e de se expressar. Muitos desses erros que as crianças cometem você, que é pai ou mãe, já deve ter encontrado nas escritas de seus filhos ou, se ainda não viu, provavelmente verá.

Uma das primeiras ideias das crianças que iniciam o processo de alfabetização é achar que para escrever é preciso usar muitas letras. Em parte, isso é verdade. O que a criança ainda não sabe é que existe um critério, uma quantidade relativa de letras. Isso ocorre numa etapa de desenvolvimento da construção da escrita que a pesquisadora Emília Ferreiro chamou de pré-silábica. Nessa fase, a criança ainda não faz relações entre o som e a grafia, entre o que ela fala e o que escreve. Ela apenas discrimina a escrita por meio de letras, sinais bem específicos que ela já sabe onde encontrar.

Com o avanço de suas investigações, no uso da leitura e da escrita na escola ou em casa, as crianças vão se dando conta de que, para ser compreendidas, precisam dominar os critérios para as escolhas dessas letras. Nessa fase é comum que elas suprimam algumas letras, escrevam de forma espelhada etc.:

Na lista acima, estão escritas as atividades da rotina escolar numeradas de 1 a 9: entrada, roda, leitura, lanche, parque, duro ou mole, colagem, história e saída. Palavras como rodalanche e parque estão escritas com duas letras: OA, PX, PQ. Se seu filho escreve assim, não se preocupe; pelo contrário, comemore! Ele já está perto de dominar o sistema de escrita. Já aprendeu que não adianta só enfileirar letras, mas definir quantas e quais serão necessárias. A regra dessa criança é clara: uma letra para cada sílaba. É uma regra inteligente, que continua funcionando em sua lista nas palavras história, grafada ITA, e saída, grafada AIA. Nessas, em especial, fica evidente a consciência já construída da relação entre os sons, o que se fala e o que se escreve. Essa é uma fase que Ferreiro nomeou de silábica.

Muitas outras investidas ainda serão necessárias até que a criança note a ocorrência da escrita convencional nas situações práticas da vida e de sua própria escrita. Investigando e escrevendo com segurança, ela vai dominar a escrita alfabética, que certamente trará alívio, alegria e orgulho aos pais.

Mas o processo não se encerra aí! Depois de dominar o sistema de escrita, a criança ainda aprenderá a se expressar com coerência, com sentido e significado em diferentes atividades sociais, para produzir textos variados. Ainda vai aprender a escrever contos, crônicas, e-mails, receitas culinárias, relatórios de pesquisa, artigos de opinião e tantos outros textos. Vai aprender as regras da ortografia, como melhor utilizar a gramática, a pontuação, os processos de revisão de texto etc.

A jornada leitora e escritora na escola é longa e com muitos percalços, e também com muitas descobertas e alegria. Iniciar bem esse processo é o desejo de todos – dos pais, dos professores e das crianças. Cobrança e pressão por resultados não ajudam; ao contrário, criam para a criança um fantasma: o medo do fracasso. Garantir tempo e oportunidades para ler e escrever é tarefa da escola que pode ser apoiada pelos pais.

Outra forma de a família participar desse momento em casa é assegurar o tempo para as crianças brincarem, além de se dedicarem às lições. Em casa, garantir a qualidade da brincadeira é facilitar o acesso da criança a todos os portadores de escrita que estão presentes nos cenários dos jogos e dos brinquedos – desde as regras que vêm impressas nas caixas dos jogos até lápis e papel para brincar de escrever à vontade. Deixe a criança escrever sem medo! Escrever não deve ser uma lição ou uma tarefa árdua e sim parte de sua atividade de brincar. Como ocorreu numa ocasião entre crianças de 5 anos no faz de conta de Disk Pizza:

Fonte: Mônica Nogueira Camargo de Toledo, Mãe! E agora, o que eu falo? Revista Avisa lá, 2ª edição, São Paulo: 2000. Disponível no link: https://avisala.org.br/index.php/assunto/tempo-didadico/mae-e-agora-o-que-e-que-eu-falo/No bloquinho de notas, ao lado do telefone, podia-se ler os sabores das pizzas que deveriam ser entregues. Mas como o entregador sabe para quem deve ser levada a pizza quentinha? Ah, o nome do cliente é fundamental! É o que consta na segunda anotação da mesma criança:

É nesse momento de brincar que muitas ideias acabam vingando! Essa criança está aprendendo sobre como usar as letras para produzir seus próprios textos; quer dizer, está fazendo um reconhecimento das regras que organizam nosso sistema de escrita, que é alfabético. Além disso, ela está refletindo sobre os usos sociais da escrita, sobre como adultos a utilizam para organizar a vida, satisfazer seus desejos e prover suas necessidades.

O tempo de brincar e o de aprender a ler e a escrever não concorrem; ao contrário, se complementam. O melhor é que as crianças sintam-se à vontade para errar, para se arriscar a escrever como pensam, sem a pressão de ter de acertar a cada escrita. Esse tempo de errar é, na verdade, o tempo de testar, de tentar e de pensar, ações necessárias às crianças que estão sendo alfabetizadas.

Uma das principais conquistas das crianças no primeiro ano da escola – às vezes muito antes – é a escrita do nome próprio. É de se esperar que a criança possa aprender a escrever seu próprio nome não só pela importância que isso tem em si, pela possibilidade de assinar, de fazer-se representar por escrito, além de todas as questões identitárias, mas também porque o nome próprio é a principal fonte de consulta para outras escritas. As crianças adoram escrever seu nome em tudo, em casa também. Oferecer lápis, papel e etiquetas pode estimular a curiosidade inicial sobre como se escreve os nomes dos familiares.

Além disso, disponibilizar livros de brincadeiras cantadas e parlendas com textos que as crianças já sabem de memória é sempre uma oportunidade a mais de estar consigo mesmo e com as letras, procurando relacionar o que ela já sabe de memória com o que está escrito nas páginas do livro. Essa é uma proposta na qual as escolas costumam investir bastante no primeiro ano e que pode ser livremente explorada em casa.

Seja qual for a metodologia da escola e o ambiente de casa, é certo que as crianças vão continuar pensando, inventando e criando, enquanto lhes for permitido. Um caminho inteligente e instigante para alfabetizar crianças pode ser um pouco mais trabalhoso do que receitas simples, com passos idênticos para todas as crianças, repetindo antigos modelos.

Letras e sílabas isoladas não têm sentido senão nos textos. Exercícios motores e letras isoladas não geram motivação para escrever. É por isso que muitas crianças apresentam dificuldades no processo de alfabetização inicial. Para aprender a ler e a escrever elas precisam antes encontrar sentido para isso. O trabalho de letramento na escola busca construir esse campo de experiências com sentido para todas as crianças.

O que se espera ao final de todo esse percurso não é apenas que as crianças decodifiquem sinais, mas que desenvolvam autonomia, iniciativa e capacidades para se expressar, para dizer por escrito o que desejam. O ciclo de alfabetização – que aliás dura mais do que o 1º ano – serve para tornar a criança um sujeito autônomo, capaz de interagir no mundo com alegria, inteligência, autonomia e criatividade. Não é isso, afinal, o que todo pai e toda mãe espera para o futuro de seu filho? A jornada será mais bem-sucedida se as crianças tiverem tempo para pensar, experiências para viver e um olhar acolhedor e confiante que não deixa dúvida de que tudo vai dar certo. Afinal, aprender é a melhor parte de estar na escola.

*Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), especialização em Educação a Distância pelo Senac-Rio, mestrado em Teorias do Ensino, Didática e Formação de Professores e doutorado em Linguagem e Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Atualmente é assessora pedagógica para Educação Infantil, professora de cursos de extensão universitária na área de alfabetização, professora e coordenadora pedagógica da pós-graduação Fazeres e Investigações das Crianças de 4 a 6 Anos do Instituto Singularidades, coordenadora de projetos do Instituto Singularidades e coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá. É autora de livros especializados em formação de professores.